Na fase inicial da vida das bezerras, cada detalhe do manejo nutricional influencia diretamente o desenvolvimento ruminal, o desempenho zootécnico e o bem-estar dos animais. Dentre esses cuidados, o fornecimento de água potável é, frequentemente, negligenciado ou subestimado, especialmente sob a justificativa de que o leite já supriria a demanda hídrica.
Contudo, a ciência e a prática de campo vêm demonstrando que essa abordagem pode comprometer silenciosamente o crescimento, a saúde e até a longevidade produtiva desses animais. Mais do que uma simples hidratação, a água desempenha funções fisiológicas e digestivas essenciais, especialmente nos primeiros dias de vida.
Neste artigo, você vai entender por que o acesso precoce à água é indispensável, quais são os impactos reais da sua ausência, e como um manejo hídrico adequado pode se tornar um diferencial técnico para o sucesso da criação de bezerras leiteiras.
Imagem de uma bezerra na fase inicial da vida ingerindo água. Fonte: Bruna Maeda e Laryssa Mendonça
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Composição corporal e exigência hídrica inicial
Ao nascimento, aproximadamente 80% do peso corporal de uma bezerra é composto por água, o que reflete sua elevada taxa metabólica e demanda fisiológica nos primeiros dias de vida. Esse percentual é gradualmente reduzido com o desenvolvimento, à medida que ocorre a deposição de tecido adiposo, o qual representa de 65% a 75% do ganho de peso corporal nessa fase (Bartlett et al., 2006; Diaz et al., 2001).
Ainda assim, até os 40 dias de idade, a proporção de água no organismo permanece acima de 70%, reforçando a importância do fornecimento constante e adequado de água potável durante esse período crítico.
A necessidade hídrica das bezerras está intimamente relacionada ao consumo de matéria seca (MS). Um estudo clássico conduzido por Atkeson et al. (1934) demonstrou que, antes do desmame, bezerras consomem em média cerca de 7 litros de água para cada quilo de MS ingerida. Após os seis meses de idade, essa relação diminui, estabilizando-se em aproximadamente 4 litros de água por quilo de MS.
Esses dados ilustram claramente que o requerimento hídrico varia de acordo com a idade do animal e sua ingestão alimentar, sendo maior nas fases iniciais, especialmente durante a introdução de concentrados.
Esse consumo pode ser ainda mais elevado em situações de estresse térmico, nas quais as bezerras precisam dissipar calor e manter sua temperatura corporal. Estimativas baseadas em dados de bovinos jovens indicam que as exigências de manutenção energética aumentam entre 20% e 30% sob altas temperaturas ambientais (NRC, 2001). Sem acesso livre à água, essas demandas fisiológicas não são atendidas, comprometendo o bem-estar e o desempenho zootécnico.
Diante disso, entender o perfil hídrico corporal e os fatores que modulam o consumo de água em bezerras jovens é essencial para um manejo eficiente, preventivo e fisiologicamente adequado.
Quando iniciar o fornecimento de água?
O fornecimento de água potável para bezerras deve ser iniciado nas primeiras 24 horas de vida. Embora o leite ou o sucedâneo lácteo contenham aproximadamente 87% de água em sua composição, esse líquido não é suficiente e nem adequado para suprir todas as necessidades hídricas da bezerra, principalmente quando se considera seu papel no desenvolvimento do trato digestivo funcional.
Ao ser ingerido, o leite é direcionado diretamente ao abomaso por meio da ação da goteira esofágica, um reflexo fisiológico que desvia o alimento líquido da porção anterior do rúmen-retículo-omaso. Ou seja, o leite não passa pelo rúmen, e portanto, não contribui para sua hidratação e desenvolvimento funcional.
Já a água, ao ser ingerida de forma independente, alcança o rúmen diretamente, promovendo o crescimento da microbiota ruminal e a ativação de processos fermentativos fundamentais à digestão de alimentos sólidos.
Essa interação é crítica: para que haja digestão efetiva de concentrados e forragens, é necessário que haja uma população microbiana ativa no rúmen, e isso só é possível com a presença de água. Como consequência, o acesso precoce à água estimula a ingestão de ração inicial, acelera o desenvolvimento do rúmen e contribui diretamente para o desempenho zootécnico das bezerras.
Negligenciar esse fornecimento compromete a eficiência alimentar, o ganho de peso e o tempo até o desaleitamento. Bezerras que não recebem água à vontade nas primeiras semanas tendem a consumir menos concentrado e a apresentar atraso no crescimento, como mostrado em diversos estudos, especialmente os conduzidos por Kertz et al. (1984, 2022).
Portanto, oferecer água potável e limpa desde o primeiro dia de vida é uma exigência técnica que vai além do bem-estar animal: é uma estratégia nutricional essencial para a transição de um animal monogástrico funcional (fase de aleitamento) para um ruminante eficiente (fase pós-desmame).
Ilustração do sistema digestivo de uma bezerra em aleitamento, evidenciando a presença da goteira esofágica. Fonte: Agros
Impactos na ingestão de alimento sólido e crescimento
A introdução de água desde os primeiros dias de vida não se limita à hidratação: ela é um dos principais fatores que impulsionam o consumo precoce de ração seca e o desenvolvimento ruminal. Essa relação direta tem reflexos concretos sobre o crescimento, a eficiência alimentar e o tempo até o desaleitamento das bezerras.
Estudos clássicos e contemporâneos reforçam essa correlação. Kertz et al. (1984) observaram que bezerras que não tiveram acesso à água livre nas quatro primeiras semanas de vida apresentaram uma redução de 31% no consumo de concentrado e 38% a menos de ganho de peso corporal, quando comparadas a bezerras alimentadas com a mesma dieta líquida, mas com água ad libitum (à vontade).
Já em um seguimento posterior, Kertz (2022) verificou que as bezerras com acesso precoce à água também consumiram, em média, 300 g a mais de leite por dia, apresentando maior altura e comprimento corporal e melhor eficiência alimentar até os 5 meses de idade (KERTZ et al., 1984; KERTZ, 2022).
O fornecimento de água estimula a mastigação, a salivação e o comportamento ingestivo, facilitando a aceitação precoce da ração inicial. Além disso, a presença de água no rúmen é determinante para o início da fermentação, o que leva à produção de ácidos graxos voláteis fundamentais para o desenvolvimento das papilas ruminais. A ausência de água reduz essa atividade microbiana, retardando o crescimento da mucosa ruminal e, portanto, o aproveitamento eficiente do alimento sólido (KHANDAGALE et al., 2008).
Outro aspecto relevante é o impacto direto da ingestão de água na digestibilidade da fibra. Bezerras que consomem mais água apresentam maior digestibilidade aparente da FDN e FDA, promovendo melhor aproveitamento dos nutrientes presentes nas rações iniciais e silagens oferecidas após o desaleitamento (LÓPEZ et al., 2021).
Além do ganho de peso, esses efeitos se refletem em menor idade ao desmame, maior precocidade sexual e, a longo prazo, melhor desempenho produtivo na vida adulta. Tudo isso torna o fornecimento precoce de água uma estratégia de manejo com reflexo direto no retorno econômico da propriedade leiteira.
Efeitos sobre a saúde e bem-estar animal
O fornecimento de água limpa e potável desde os primeiros dias de vida não é apenas uma questão nutricional, é uma estratégia preventiva essencial para a saúde e o bem-estar das bezerras. Durante as primeiras semanas, os bezerros enfrentam desafios fisiológicos que os tornam particularmente sensíveis à perda hídrica, sendo a diarreia neonatal e o estresse térmico os dois principais fatores de risco nesse contexto
Nos quadros de diarreia, a perda de água e eletrólitos pode evoluir rapidamente para desidratação moderada ou grave. Embora o leite seja mantido na dieta nesses casos, é a água que os animais procuram instintivamente para tentar restaurar o equilíbrio hídrico. Bezerras que têm acesso livre à água durante episódios de diarreia apresentam comportamento ingestivo mais ativo e recuperação mais rápida, além de menor incidência de complicações secundárias (KERTZ et al., 1984). No entanto, nesses casos, a administração de soro oral como terapia de suporte é indispensável e deve ser adotada de forma imediata.
Em ambientes com temperaturas elevadas, a necessidade de dissipação de calor aumenta significativamente. Estimativas indicam que o estresse térmico pode elevar as exigências energéticas de manutenção em até 30% em bovinos jovens, tornando a oferta contínua de água um recurso indispensável para o controle térmico e o desempenho metabólico adequado (NATIONAL RESEARCH COUNCIL, 2001).
Outro ponto essencial é a qualidade da água oferecida às bezerras. Mesmo quando há disponibilidade hídrica, a presença de contaminantes físicos, químicos ou microbiológicos pode comprometer a saúde intestinal e a palatabilidade da água. Por isso, recomenda-se que a água destinada a bezerras leiteiras seja periodicamente avaliada com base em parâmetros específicos para animais jovens em aleitamento.
A seguir, será apresentada uma tabela técnica com os principais indicadores de qualidade da água para bezerras, que deve ser utilizada como referência para o monitoramento semestral.
Tabela sobre parâmetros da qualidade físico-química e microbiológica da água. Fonte: Padrão Ouro 2024
Cuidados com o manejo da água para bezerras
Para que a água cumpra seu papel nutricional, fisiológico e preventivo, o manejo do seu fornecimento deve ser tecnicamente planejado, considerando tanto o comportamento ingestivo das bezerras quanto às boas práticas zootécnicas de ambiência e higiene.
O primeiro ponto essencial é garantir que a água esteja sempre disponível em quantidade e qualidade adequadas. O fornecimento deve ser feito em recipientes próprios, de fácil acesso e com altura compatível com o tamanho dos animais. É fundamental que os bebedouros sejam limpos diariamente, evitando acúmulo de sujeira, restos de ração ou biofilme, que reduzem a palatabilidade e favorecem contaminações.
Comparativo da higiene do bebedouro: na primeira imagem, observam-se sujidades e presença de diarreia no chão; na sequência, o mesmo local após higienização adequada. Fonte: Bruna Maeda
Outro cuidado relevante é o posicionamento físico dos bebedouros em relação à ração seca. Idealmente, os dois recipientes devem estar fisicamente separados ou com alguma barreira entre eles, evitando que as bezerras derramem água sobre o concentrado, o que pode favorecer a fermentação e reduzir sua aceitação (KERTZ et al. 1984).
Com esses cuidados práticos, o fornecimento de água passa a ser um aliado direto no desempenho e bem-estar das bezerras.
Conclusão
A água é, indiscutivelmente, o nutriente mais crítico na fase inicial da vida das bezerras. Sua função vai muito além da hidratação: ela participa ativamente do equilíbrio metabólico, favorece o aproveitamento dos alimentos e é indispensável para o bom funcionamento do trato digestivo.
Desde os primeiros dias de vida, a disponibilidade de água potável e de livre acesso influencia diretamente o desenvolvimento ruminal, o comportamento ingestivo e, como consequência, o desempenho zootécnico.
Ignorar essa necessidade é comprometer silenciosamente o potencial de crescimento, a eficiência alimentar e até mesmo a imunocompetência dos animais. Diversos estudos demonstram que bezerras com acesso à água desde o início consomem mais ração, apresentam maior ganho de peso e maior digestibilidade de nutrientes. Ou seja, é uma prática simples que impacta diretamente na eficiência técnica e econômica do sistema.
Reforçando esse entendimento, revisões abrangentes como a “100-Year Review”, publicada no Journal of Dairy Science, demonstram que sem água disponível em quantidade e qualidade adequadas, não há desenvolvimento ruminal eficiente nem aproveitamento ideal de alimentos sólidos – dois pilares para a transição segura de um animal monogástrico funcional para um ruminante produtivo (KERTZ, 2022; NATIONAL RESEARCH COUNCIL, 2001).
Portanto, o fornecimento de água para bezerras não deve ser tratado como uma recomendação opcional, mas sim como um requisito zootécnico básico, com reflexos diretos sobre saúde, bem-estar, longevidade produtiva e rentabilidade da propriedade.
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Referências
- ATKESON, F. W.; WARREN, T. R.; ANDERSON, G. C. Water consumption of dairy calves. Journal of Dairy Science, v. 17, n. 10, p. 695–703, 1934.
- AZEVEDO, Rafael Alves de et al. Padrão Ouro de Criação de Bezerras e Novilhas Leiteiras. 3. ed. Brasil, jun. 2024.
- BARTLETT, K. S. et al. Growth and body composition of dairy calves fed milk replacers containing different amounts of protein at two feeding rates. Journal of Animal Science, v. 84, p. 1454–1467, 2006.
- DIAZ, M. C. et al. Composition of growth of Holstein calves fed milk replacer from birth to 105-kilogram body weight. Journal of Dairy Science, v. 84, p. 830–842, 2001.
- KERTZ, A. F.; REUTZEL, L. F.; MAHAN, D. C. Ad libitum water intake by neonatal calves and its relationship to calf starter intake, weight gain, feces score, and season. Journal of Dairy Science, v. 67, n. 12, p. 2964–2969, 1984.
- KERTZ, A. F. Calf nutrition and management – 100 Year Review. Journal of Dairy Science, v. 105, p. 8586–8604, 2022.
- KHANDAGALE, P. V. et al. Calf nutrition from birth to breeding. Journal of Veterinary Science, 2008.
- LÓPEZ, A. J. et al. Effect of a milk byproduct-based calf starter feed on dairy calf nutrient consumption, rumen development, and performance when fed different milk levels. Journal of Dairy Science, 2021.
- NATIONAL RESEARCH COUNCIL. Nutrient Requirements of Dairy Cattle. 7. ed. Washington, DC: National Academy Press, 2001.
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