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Diarreia em bezerras por E. coli: impacto na saúde e na produtividade

Bezerra com diarreia

A criação de bezerras leiteiras enfrenta como um dos maiores desafios sanitários a diarreia neonatal, responsável por elevada morbidade e mortalidade nesse grupo etário. Estima-se que mais de 50% das mortes de bezerras antes do desmame estejam associadas a episódios de diarreia, com impactos diretos sobre o bem-estar animal, os custos de tratamento e o futuro produtivo das novilhas que sobrevivem (Foster & Smith, 2009).

Dentre os agentes infecciosos envolvidos, a Escherichia coli ocupa papel de destaque. Embora muitas cepas sejam comensais da microbiota intestinal bovina, algumas variantes patogênicas são capazes de desencadear quadros graves de diarreia em animais jovens, especialmente nas primeiras semanas de vida.

Neste artigo, serão abordados de forma detalhada os aspectos etiológicos, os mecanismos patofisiológicos envolvidos na diarreia por E. coli, além dos métodos de diagnóstico, das estratégias de prevenção e das principais medidas terapêuticas recomendadas para o manejo dessa enfermidade em bezerras leiteiras.

Principais cepas de Escherichia coli associadas à diarreia em bezerras

A Escherichia coli é uma bactéria Gram-negativa, em forma de bastonete, pertencente à família Enterobacteriaceae. Embora faça parte da microbiota intestinal normal dos bovinos, determinadas cepas apresentam fatores de virulência que as tornam patogênicas, especialmente em animais jovens com sistema imunológico imaturo.

Entre as cepas de maior relevância em bezerras leiteiras destacam-se:

  • E. coli enterotoxigênica (ETEC): é a principal responsável pelos surtos de diarreia nos primeiros dias de vida, geralmente até a primeira semana. Seu mecanismo de patogenicidade depende da adesão ao epitélio intestinal por meio de fímbrias – principalmente F5 (K99), F41 e 987P – e da produção de toxinas termoestáveis (STa) e, em alguns casos, toxinas termolábeis (LT). Essas toxinas estimulam a secreção de água e eletrólitos no lúmen intestinal, levando à diarreia secretória (Foster & Smith, 2009).
  • E. coli enteropatogênica (EPEC): pertence ao grupo das AEEC (attaching and effacing E. coli), que causam a lesão de aderência e apagamento (A/E), caracterizada pela fixação da bactéria ao epitélio intestinal e destruição das microvilosidades. Esse processo, mediado por genes da ilha de  de patogenicidade denominada LEE (Locus of Enterocyte Effacement), que reduz a superfície absortiva intestinal e compromete a digestão, resultando em diarreia mal absortiva com inflamação da mucosa
  • Outros grupos: cepas produtoras de toxina de Shiga (STEC/EHEC) também podem estar presentes nas fezes de bezerros, mas sua associação direta com doença clínica bovina ainda precisa ser elucidada, sendo mais relevante do ponto de vista de saúde pública por seu potencial zoonótico (Foster & Smith, 2009).

A ocorrência da colibacilose está intimamente relacionada a fatores ambientais e de manejo. A transmissão se dá principalmente pela via fecal-oral, através da ingestão de colostro, leite, água ou alimentos contaminados com fezes.

Ambientes úmidos, sujos e com alta densidade de animais favorecem a disseminação do agente, aumentando o risco de surtos em rebanhos leiteiros.

Colonização da Mucosa na Colibacilose Entérica

Colonização da Mucosa na Colibacilose Entérica. (Cortesia do Dr. J. F. Zachary, College of Veterinary Medicine, University of Illinois). Retirado de ZACHARY, James F. Bases da Patologia em Veterinária.

Patofisiologia da diarreia por Escherichia coli

A patofisiologia da diarreia por Escherichia coli em bezerras depende do patótipo envolvido. Enquanto as cepas enterotoxigênicas (ETEC) desencadeiam diarreia secretória por meio da ativação de mecanismos de hipersecreção intestinal, as enteropatogênicas e as do grupo AEEC promovem lesões estruturais na mucosa, resultando em redução da absorção de nutrientes e fluidos

ETEC (Enterotoxigênica)

Logo após o nascimento, bezerras expostas a ambientes contaminados podem ingerir E. coli ETEC. O primeiro passo da infecção é a adesão às células epiteliais do intestino delgado, mediada principalmente pelas fímbrias F5 (K99), F41 e 987P. Essa fixação permite que a bactéria resista ao peristaltismo e colonize o íleo.

Uma vez aderida, a ETEC secreta a toxina termoestável (STa), que se liga ao receptor Guanilato ciclase-C (GCC) da borda em escova dos enterócitos. Essa ligação ativa a via do cGMP–proteína quinase II (cGKII), culminando na fosforilação e ativação do canal de cloro CFTR (Regulador de Condutância Transmembrana da Fibrose Cística). O resultado é a secreção maciça de cloro para o lúmen intestinal, acompanhada osmoticamente por sódio, bicarbonato e água.

Além disso, a STa pode inibir o cotransportador Na+/H+, reduzindo ainda mais a absorção de sódio e agravando a desidratação. Estudos mostram que essa combinação de secreção exacerbada e absorção inibida leva a uma diarreia aquosa profusa, rapidamente acompanhada de acidose metabólica devido à perda de bicarbonato e ao acúmulo de lactato.

EPEC/AEEC (Enteropatogênica e Attaching and Effacing)

Já as cepas EPEC e AEEC produzem uma lesão intestinal característica denominada attaching and effacing (A/E). Esse processo envolve a adesão íntima da bactéria ao enterócito, destruição das microvilosidades e alterações no citoesqueleto celular, com formação de pedestais ricos em actina polimerizada sob o ponto de ligação bacteriana.

Os genes responsáveis pela lesão A/E estão agrupados em uma ilha de patogenicidade denominada LEE (Locus of Enterocyte Effacement), presente tanto em cepas EPEC quanto em EHEC. Essa reorganização estrutural leva à redução da superfície absortiva intestinal e ao comprometimento da digestão e absorção de nutrientes, resultando em diarreia mal absortiva associada à inflamação da mucosa.

Consequências Clínicas

O efeito final desses mecanismos patogênicos é a perda acelerada de fluidos e eletrólitos, resultando em desidratação, acidose metabólica e risco de choque hipovolêmico. Enquanto a ETEC causa quadros mais precoces e secretórios, a EPEC tende a provocar diarreias menos intensas, mas de maior duração, frequentemente em animais um pouco mais velhos (Foster & Smith, 2009; Coura, Lage & Heinemann, 2019).

Ações de Toxinas Bacterianas (Fatores de Virulência) sobre a Estrutura e a Função de Células-alvo.

Ações de Toxinas Bacterianas (Fatores de Virulência) sobre a Estrutura e a Função de Células-alvo. (Cortesia do Dr. J. F. Zachary, College of Veterinary Medicine, University of Illinois.) Retirado de ZACHARY, James F. Bases da Patologia em Veterinária.

Sintomas da contaminação por Escherichia coli

Os sinais clínicos são dominados pela diarreia aquosa profusa, de início súbito, acompanhada de desidratação rápida. Animais afetados apresentam olhos encovados, perda de elasticidade cutânea, mucosas secas e fraqueza progressiva. A desidratação grave leva à acidose metabólica, frequentemente associada a anorexia, letargia e dificuldade para manter-se em estação.

Bezerra com diarreia

Animal com diarreia. Retirado do acervo digital Rehagro.

Em quadros mais severos, pode ocorrer septicemia, quando a bactéria atravessa a barreira intestinal e alcança a circulação sanguínea. Nesses casos, observam-se sinais sistêmicos, como hipertermia, choque séptico e morte súbita, especialmente em bezerras que não receberam colostro adequado ou que vivem em ambientes de alta pressão de infecção.

Mesmo nos animais que sobrevivem, episódios de diarreia intensa durante a fase neonatal podem resultar em atraso no crescimento, baixa eficiência alimentar e comprometimento da futura produção leiteira, traduzindo-se em perdas econômicas significativas para a propriedade (Gull, 2022).

Bezerra com sinais de desidratação

Bezerra com sinais de desidratação. Fonte: Bruna Maeda

Como realizar o diagnóstico?

O diagnóstico da diarreia por Escherichia coli em bezerras deve considerar sinais clínicos, histórico do rebanho e exames laboratoriais. Embora a coprocultura possibilite o isolamento do agente, seu valor é limitado devido à presença frequente de cepas não patogênicas; por isso, a detecção de fatores de virulência é essencial para confirmar a participação de ETEC ou EPEC.

Além disso, é necessário realizar o diagnóstico diferencial frente a outras causas de diarreia neonatal, como criptosporidiose, rotavirose, coronavirose e salmonelose (Foster & Smith, 2009).

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Estratégias de prevenção contra E. coli

A prevenção da diarreia em bezerras causada por Escherichia coli é mais eficaz do que qualquer intervenção terapêutica, especialmente porque os surtos podem se instalar rapidamente e resultar em altas taxas de mortalidade.

As medidas preventivas envolvem principalmente o manejo adequado do colostro, higiene ambiental e programas de imunização.

Colostragem adequada

O fornecimento de colostro de boa qualidade, em quantidade suficiente e no momento correto é o pilar fundamental da prevenção. Recomenda-se que a bezerra receba pelo menos 10% do seu peso vivo em colostro dentro das primeiras 6 horas de vida, garantindo níveis adequados de imunoglobulinas e proteção contra patógenos entéricos, incluindo E. coli .

Pilares da boa colostragem

Pilares da boa colostragem. Fonte: Rehagro.

Higiene e manejo

O controle ambiental é determinante para reduzir a pressão de infecção. Instalações secas, bem ventiladas e higienizadas, associadas ao uso de utensílios limpos para fornecimento de leite e água, diminuem significativamente a exposição das bezerras à via fecal-oral.

A implementação de rotinas de biosseguridade reduz a circulação de cepas patogênicas no ambiente e contribui para a sustentabilidade sanitária do rebanho.

Vacinação

A vacinação de vacas gestantes com antígenos específicos de E. coli (como K99/F5) é amplamente utilizada como forma de aumentar os títulos de anticorpos no colostro.

Essa prática confere imunidade passiva às bezerras, protegendo-as nos primeiros dias de vida, quando são mais suscetíveis à ETEC (Coura, Lage & Heinemann, 2019).

Abordagem terapêutica e manejo

O sucesso no tratamento depende do tempo de evolução da doença, sendo essencial que se inicie o mais rápido possível após a visualização dos sinais clínicos. Logo,  o principal objetivo é corrigir a desidratação e os distúrbios metabólicos. Junto à terapia antimicrobiana assim que possível.

Fluidoterapia

A reidratação é a base do tratamento.

  • Em casos leves a moderados, utilizam-se soluções eletrolíticas orais, que devem conter glicose ou outros substratos que favoreçam a absorção de sódio por co-transporte, compensando a inibição do trocador Na⁺/H⁺ causada pela toxina STa.
  • Em casos graves, a fluidoterapia intravenosa é indispensável para restabelecer o equilíbrio hidroeletrolítico e corrigir a acidose metabólica. A escolha da solução deve evitar o uso excessivo de bicarbonato, já que este pode favorecer a sobrevivência da ETEC no abomaso; alternativas à base de acetato são mais indicadas.

Correção da acidose

A acidose metabólica é uma complicação comum e deve ser tratada de acordo com a gravidade. A administração controlada de bicarbonato de sódio pode ser necessária em bezerras com depressão clínica acentuada, mas sempre avaliada com cautela.

Uso de antimicrobianos

O emprego de antibióticos em casos de diarreia neonatal é controverso. Em situações não complicadas, o foco deve permanecer no suporte hídrico e nutricional.

No entanto, quando há sinais de septicemia o uso de antimicrobianos pode ser indicado. Entre as opções recomendadas estão as sulfonamidas, sempre respaldadas por testes de sensibilidade para evitar resistência bacteriana.

Suporte nutricional e adjuvantes

É fundamental que as bezerras mantenham acesso ao leite ou sucedâneo de qualidade, em temperatura adequada, evitando-se a suspensão prolongada da alimentação. O uso de probióticos e prebióticos pode auxiliar na restauração do equilíbrio da microbiota intestinal e acelerar a recuperação clínica.

Formulação do soro oral

Fonte: Setor Clínica de Ruminantes – UFMG

Considerações finais

A diarreia em bezerras causada por Escherichia coli permanece como um dos principais desafios sanitários da bovinocultura leiteira, impactando diretamente o bem-estar animal, a produtividade futura e a rentabilidade das propriedades.

As formas clínicas estão relacionadas a diferentes patotipos: enquanto a ETEC induz quadros precoces e graves de diarreia secretória, as EPEC/AEEC provocam lesões intestinais que resultam em diarreia mal absortiva.

O sucesso no enfrentamento dessa enfermidade depende da associação entre medidas preventivas e diagnóstico preciso. Estratégias como a colostragem adequada, a manutenção de boas condições higiênicas e o uso de vacinas maternas específicas são determinantes para reduzir a ocorrência da doença.

Quando a infecção se instala, a fluidoterapia continua sendo a base do tratamento, devendo ser ajustada à gravidade do quadro e, em casos de septicemia, associada a antimicrobianos criteriosamente escolhidos.

Assim, a prevenção deve ser entendida como a medida mais eficaz, garantindo não apenas a redução da mortalidade neonatal, mas também a preservação do potencial produtivo das futuras vacas leiteiras. O domínio dos conceitos de etiologia, patofisiologia, diagnóstico, prevenção e tratamento da colibacilose é essencial para médicos veterinários e estudantes, permitindo decisões clínicas mais assertivas e contribuindo para a melhoria da eficiência da pecuária leiteira.

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Referências

  • KHAN, Cynthia M. Manual Merck de Veterinária, 10ª edição. Rio de Janeiro: Roca, 2014. E-book. ISBN 978-85-412-0437-8. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/978-85-412-0437-8/. Acesso em: 02 out. 2024.
  • ZACHARY, James F. Bases da Patologia em Veterinária. Rio de Janeiro: GEN Guanabara Koogan, 2018. E-book. ISBN 9788595150621. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788595150621/. Acesso em: 04 out. 2024.
  • AZEVEDO, Rafael et al. Padrão ouro de criação de bezerras e novilhas leiteiras. Uberaba, MG: Alta CRIA, 2022.
  • FERRAZ, Rafael et al. Qualidade do leite: como ter sucesso na criação de bezerras leiteiras. Belo Horizonte: Rehagro, 2023. 
  • COURA, F. M.; LAGE, A. P.; HEINEMANN, M. B. Patotipos de Escherichia coli causadores de diarreia em bezerros: uma atualização. Pesquisa Veterinária Brasileira, v. 39, n. 9, p. 619-628, 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pvb/a/mfthg7cKYnRLLDqH4VFfjNw/?format=html&lang=pt. Acesso em: 18 set. 2025

Autoras: Isabela e Bruna Maeda

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