A silagem de milho ocupa posição central na alimentação de vacas leiteiras de alto desempenho no Brasil, sendo o principal volumoso utilizado em sistemas de confinamento e semiconfinamento. Essa preferência é justificada pelo seu alto valor energético, boa palatabilidade, alto potencial produtivo por área, e presença de fibra fisicamente efetiva, essencial para a manutenção da saúde ruminal e para a maximização do consumo de matéria seca (Jobim et al., 2007).
Contudo, mais do que simplesmente produzir e armazenar silagem, é preciso garantir que os nutrientes estejam efetivamente disponíveis para digestão. É nesse ponto que o KPS (Kernel Processing Score) ganha destaque como um dos principais indicadores de qualidade da silagem de milho.
Este índice avalia a eficiência do processamento dos grãos no momento da colheita e está diretamente relacionado à digestibilidade do amido, influenciando de forma significativa o desempenho produtivo dos animais (Shinners & Holmes, 2013).
Mesmo com um bom teor de matéria seca e adequada fermentação, uma silagem com grãos mal processados resultará em desperdício de nutrientes. Grãos inteiros ou pouco fragmentados escapam à digestão ruminal e intestinal, e são excretados nas fezes, o que representa desperdício direto de energia, algo crítico em sistemas de produção intensiva.
Portanto, falar sobre silagem de milho sem considerar a avaliação do KPS é ignorar uma das variáveis mais determinantes para a eficiência alimentar e a lucratividade na pecuária leiteira moderna.
O que é KPS?
O KPS, sigla para Kernel Processing Score, é um índice que expressa a eficiência do processamento dos grãos de milho durante a ensilagem.
O KPS representa a porcentagem de amido que está fisicamente acessível à digestão ruminal por ter sido exposto através da quebra da estrutura do grão. Quanto maior o KPS, maior a quantidade de grãos suficientemente fragmentados e, consequentemente, maior a digestibilidade do amido presente na silagem.
Esse indicador é obtido por meio da análise de uma amostra de silagem, na qual se verifica a proporção de amido que passa por uma peneira de 4,75 mm, conforme metodologia laboratorial padronizada (Ferraretto & Shaver, 2015). A medição do KPS é especialmente relevante em silagens de milho, dado que o grão representa a principal fração energética do volumoso.
Como o KPS avalia a qualidade do processamento de grãos?
Durante a colheita do milho para silagem, o pericarpo dos grãos deve ser rompido para expor o endosperma, que contém o amido. Essa ruptura depende da regulagem e eficiência do equipamento colhedor e do sistema de processamento.
Colhedoras do tipo autopropelidas possuem processadores tipo “cracker”, rolos ajustáveis que giram em velocidade diferente entre si e esmagam os grãos no processo de colheita.
Grãos mal processados (inteiros ou levemente rachados) têm o pericarpo intacto e impedem o acesso das enzimas microbianas ruminais ao amido, o que reduz a digestibilidade. Já grãos bem fragmentados, menores que ¼ do tamanho original, expõem completamente o conteúdo interno e maximizam a eficiência da fermentação ruminal (Bal et al., 2000). Portanto, o KPS é proposto com indicador da qualidade física do processamento dos grãos na silagem.
Principais estruturas do grão de milho. Fonte: Round Table on Responsible Soy
Classificação dos valores de KPS segundo literatura técnica
De acordo com os critérios estabelecidos por Shinners e Holmes (2013), os valores de KPS são classificados da seguinte forma:
- Excelente: KPS ≥ 70%;
- Adequado: KPS entre 50% e 69%;
- Insatisfatório: KPS < 50%.
Essa classificação tem aplicação direta no campo: silagens com KPS abaixo de 50% requerem ajustes imediatos nos equipamentos e no manejo da colheita, enquanto valores acima de 70% indicam um processamento altamente eficiente.
Na prática, essa métrica permite que técnicos e produtores façam correções ainda durante o processo de ensilagem, evitando perdas irreversíveis de nutrientes.
Relação entre KPS e digestibilidade do amido
O amido é uma das principais fontes de energia para vacas leiteiras de alta produção. Entretanto, sua digestibilidade está condicionada à disponibilidade física do conteúdo do grão para ação microbiana no rúmen. Quanto mais fragmentado estiver o grão, maior será a exposição do amido ao ataque enzimático. É nesse ponto que o KPS torna-se crucial: ele mede diretamente essa disponibilidade.
Estudos demonstram que valores baixos de KPS estão associados a maior excreção de amido nas fezes, sinalizando que o nutriente passou pelo trato gastrointestinal sem ser aproveitado. Em contrapartida, silagens com KPS elevado promovem maior digestibilidade total do amido, contribuindo para uma melhor conversão alimentar e maior produção de leite por quilograma de matéria seca ingerida (Ferraretto & Shaver, 2012).
Consequências práticas de um processamento inadequado
Quando o grão não é processado adequadamente, os impactos negativos são diretos e mensuráveis:
- Perda de energia: O amido excretado representa energia que poderia ser convertida em leite.
- Desempenho reprodutivo prejudicado: Com menor aporte energético, o escore de condição corporal tende a cair, impactando negativamente a ciclicidade e a fertilidade.
- Risco de acidose: Em tentativas de compensar o baixo aproveitamento do amido da silagem, é comum o aumento de concentrado na dieta, o que eleva o risco de distúrbios metabólicos.
- Maior custo por litro de leite produzido: A baixa eficiência alimentar encarece a produção, reduzindo a rentabilidade do sistema.
Esses efeitos, mesmo que sutis, acumulam-se ao longo do tempo, gerando um custo invisível que pode comprometer a sustentabilidade econômica da propriedade.
Efeitos na produção de leite e na eficiência alimentar
Um dado frequentemente citado em pesquisas práticas demonstra que a redução do amido nas fezes de 5% para 1,5% pode gerar um incremento de até 1,2 litros de leite por vaca ao dia (Ferraretto & Shaver, 2012; Oba & Allen, 2003). Esse ganho é extremamente relevante quando projetado em escala de rebanho.
Além disso, o aumento da digestibilidade do amido contribui para:
- Maior produção de propionato no rúmen, elevando a gliconeogênese hepática;
- Redução da exigência por concentrados na dieta total;
- Melhora no índice de conversão alimentar, com impacto direto na lucratividade por hectare colhido.
Portanto, o KPS deve ser encarado não apenas como uma métrica técnica, mas como um indicador econômico direto do sucesso da colheita e do processo de conservação da silagem.
Avaliação com peneira padrão (método laboratorial)
O método laboratorial para avaliação do KPS é considerado o padrão ouro pela precisão e padronização. Nele, uma amostra da silagem de milho é seca e submetida à peneiração mecânica com abertura de 4,75 mm, utilizando um agitador específico que simula a separação de partículas como ocorre no processo digestivo.
Após a peneiração, é quantificada a fração de amido que passou pela peneira, sendo esse valor expresso em porcentagem. O resultado obtido representa o KPS da amostra. Esse método é confiável, reprodutível e permite comparações entre lotes, fazendas e safras, tornando-se uma ferramenta de monitoramento técnico e zootécnico contínuo (Ferraretto & Shaver, 2015).
Apesar da acurácia, o método demanda:
- Equipamentos específicos (agitadores de peneira, forno para secagem);
- Envio de amostras para laboratórios especializados;
- Tempo de resposta mais longo, o que limita ajustes imediatos durante a colheita.
Método de separação por flutuação em água (prático)
Como alternativa ao laboratório, o método de flutuação em água permite uma avaliação prática e rápida diretamente no campo ou no silo. A técnica consiste em:
- Submergir uma amostra representativa da silagem picada em um balde ou recipiente com água;
- Aguardar a separação das partículas por densidade: os grãos inteiros e fragmentos maiores sedimentam;
- Coletar os grãos do fundo, secá-los e peneirá-los manualmente;
- Avaliar visualmente a proporção de grãos bem processados com auxílio de uma régua de referência ou tabela visual (ex: referência de ¼ do grão).
Imagens ilustrando o teste de flutuação na água, realizado durante o processo de ensilagem. É possível observar que após peneirar os grãos do fundo, foi realizada a avaliação visual dos grãos mal processados. Fonte: Acervo Rehagro
Esse método é menos preciso, mas altamente funcional para ajustes em tempo real durante a operação de colheita. Seu uso é recomendado como ferramenta de monitoramento em propriedades que buscam melhorar continuamente a qualidade da silagem e reduzir perdas nutricionais.
Comparativo entre os métodos: precisão x aplicabilidade
A recomendação prática é que o método de flutuação seja utilizado para ajustes operacionais durante a colheita, enquanto o método laboratorial sirva como validação e acompanhamento técnico zootécnico da qualidade da silagem ao longo do tempo.
Oportunidades de ajuste e melhoria no campo
Importância da regulagem da colhedora
A regulagem da colhedora é um dos fatores mais críticos para o sucesso no processamento dos grãos. Mesmo em máquinas modernas, erros como pressão insuficiente nos rolos do cracker, lâminas desajustadas ou velocidade inadequada de avanço podem comprometer severamente a qualidade do material processado.
Pontos-chave para regulagem eficiente:
- Espaçamento entre rolos processadores: deve estar entre 1 a 3 mm;
- Velocidade diferencial dos rolos: idealmente, o rolo inferior deve girar de 15% a 30% mais rápido;
- Tamanho de partícula (teoricamente efetivo): entre 8 a 15 mm, dependendo do estágio de maturação da planta.
A verificação e ajuste dessas variáveis devem ser feitos diariamente durante a colheita, com apoio de análise prática de campo (como a flutuação em água) para monitoramento contínuo.
Uso de processadores “cracker” e colhedoras automotrizes
O uso de colhedoras automotrizes com processador tipo “cracker” tem se tornado padrão em sistemas tecnificados de produção. Esses equipamentos aplicam força de esmagamento nos grãos ao mesmo tempo que promovem o corte da planta, otimizando tempo e qualidade de ensilagem.
Benefícios do uso de cracker:
- Rompimento mais completo do pericarpo;
- Fragmentação homogênea dos grãos, com maior exposição do endosperma;
- Redução de perdas fecais de amido;
- Melhora significativa no KPS, frequentemente acima de 65-70% quando bem regulado.
Para propriedades que ainda utilizam colhedoras tracionadas, é fundamental investir em adaptadores de processamento ou considerar a terceirização da colheita com máquinas equipadas.
Monitoramento contínuo como ferramenta de gestão nutricional
Tratar o KPS como um indicador de rotina, e não apenas como dado pontual de avaliação de colheita, pode gerar uma revolução na qualidade da nutrição do rebanho. A integração do KPS ao controle de qualidade da silagem permite:
- Identificar falhas operacionais rapidamente;
- Tomar decisões em tempo real para correção de rotas;
- Ajustar formulações de dieta baseadas em digestibilidade real e não teórica;
- Reduzir custos com concentrado sem perda de desempenho.
Assim, o monitoramento sistemático do KPS deixa de ser uma ação isolada e passa a compor um sistema de nutrição de precisão altamente alinhado à produtividade e rentabilidade da pecuária leiteira.
Aplicações práticas do KPS na rotina de fazendas leiteiras
Diagnóstico nutricional da silagem
Integrar o KPS ao diagnóstico nutricional da silagem permite avaliar não apenas o “quanto” se colhe, mas “como” se colhe. Dois lotes com teor semelhante de matéria seca e amido podem ter desempenho completamente diferente na dieta se um tiver KPS inferior.
Ao incluir o KPS nas análises de silagem junto de parâmetros como fibra em detergente neutro (FDN), proteína bruta (PB) e energia líquida, os técnicos têm uma visão muito mais completa e funcional do valor real do volumoso.
Isso permite:
- Reajustar dietas com base em dados de digestibilidade reais;
- Identificar a causa de quedas no desempenho de vacas sem alterações visíveis no cocho;
- Detectar silagens com potencial de substituição parcial de concentrado, otimizando custos.
Tomada de decisão em tempo real durante a colheita
O uso do método de flutuação em água como ferramenta prática de campo se mostra extremamente eficiente para ajustes operacionais durante a colheita. Ao analisar diariamente amostras processadas, é possível:
- Detectar alterações de desempenho dos processadores;
- Corrigir regulagens ainda durante a colheita, evitando perdas na origem;
- Identificar variações por talhão ou umidade da planta, adaptando a colheita conforme a realidade do momento.
Com isso, a colheita deixa de ser uma “caixa preta” e passa a ser uma operação técnica monitorada com dados, favorecendo a construção de uma silagem mais eficiente desde o início.
Correlação com indicadores zootécnicos e econômicos
Diversos indicadores da fazenda leiteira estão diretamente correlacionados com o KPS, entre eles:
- Produção de leite por vaca/dia: Maior aproveitamento do amido aumenta a eficiência energética da dieta;
- Conversão alimentar (kg MS / kg leite): Silagens com alto KPS entregam mais energia digestível por kg de matéria seca;
- Custo por litro de leite: Redução de concentrado sem perda de produção;
- Perdas fecais de amido: Menor desperdício de nutrientes.
Ou seja, o KPS não é apenas um dado técnico: é um indicador de gestão zootécnica e econômica, que deve ser monitorado com o mesmo rigor que CCS (contagem de células somáticas), produção média e taxa de concepção.
Conclusão
A busca por eficiência alimentar, maior produtividade e sustentabilidade econômica na pecuária leiteira passa, necessariamente, pelo controle da qualidade da silagem de milho. Dentro desse contexto, o KPS (Kernel Processing Score) se estabelece como um dos principais indicadores zootécnicos aplicáveis à realidade do campo.
Mais do que um número de laboratório, o KPS expressa o grau em que os grãos de milho foram devidamente processados durante a colheita, refletindo diretamente na digestibilidade do amido, na eficiência da dieta e, sobretudo, na rentabilidade da atividade. Avaliar esse parâmetro permite intervenções rápidas e assertivas, tanto no ajuste de maquinário quanto na formulação de dietas.
Portanto, incorporar o KPS à rotina das fazendas leiteiras não é mais uma escolha, mas sim uma decisão estratégica alinhada à nutrição de precisão.
Da rotina diária ao planejamento estratégico: aprenda a gerir de verdade.
A gestão de uma fazenda de leite vai muito além de alimentar vacas e ordenhar. É preciso entender números, planejar a longo prazo e tomar decisões certeiras que assegurem eficiência e rentabilidade.
O Curso Gestão na Pecuária Leiteira foi desenvolvido para ensinar, na prática, como transformar dados em resultados reais.
Referências
- Bal, M. A., Shaver, R. D., et al. (2000). Effect of Corn Silage Particle Length and Kernel Processing on Intake, Digestion, and Milk Production by Dairy Cows. Journal of Dairy Science.
- ESALQLAB (2021). Relatórios técnicos de análise de silagem. ESALQ/USP. Disponível em: https://www.esalq.usp.br
- Ferraretto, L. F., & Shaver, R. D. (2012). Effect of Corn Kernel Processing on Performance of Lactating Dairy Cows. Journal of Dairy Science.
- Ferraretto, L. F., & Shaver, R. D. (2015). Laboratory evaluation of corn silage processing: KPS. UW Extension Dairy Science Digest.
- Jobim, C. C., et al. (2007). A qualidade da silagem de milho na alimentação de vacas leiteiras. Revista Brasileira de Zootecnia.
- Oba, M., & Allen, M. S. (2003). Effects of corn grain conservation method on feeding behavior and productivity of lactating dairy cows. Journal of Dairy Science.
- Shinners, K. J., & Holmes, B. J. (2013). Kernel processing score: importance and targets. University of Wisconsin Extension.
Comentar