A sanidade digestiva das vacas leiteiras é um dos pilares fundamentais para o desempenho zootécnico e econômico de uma fazenda. Dentre as diversas afecções que podem comprometer o trato gastrointestinal dos ruminantes, a indigestão vagal merece atenção especial.
Trata-se de uma condição muitas vezes silenciosa no início, mas que pode desencadear quadros graves de timpanismo, perda de apetite e, em casos extremos, levar à morte do animal.
O nervo vago é responsável por grande parte da inervação sensorial e motora do sistema digestório dos ruminantes. Quando há uma interrupção ou disfunção em seu funcionamento, diversas estruturas do trato gastrointestinal são diretamente afetadas, resultando em prejuízos clínicos e produtivos expressivos.
Com consequências que vão desde queda na produção de leite até o descarte precoce de vacas, essa condição representa um verdadeiro desafio para médicos-veterinários, zootecnistas, técnicos de campo e produtores.
Neste artigo, você irá entender o que é a indigestão vagal, por que ela ocorre, como identificar seus sinais clínicos, o que é a Síndrome de Hoflund, como realizar o diagnóstico correto, quais são as possibilidades de tratamento e, principalmente, como prevenir esse problema de forma eficiente.
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Compreendendo o nervo vago nos ruminantes
O nervo vago (nervo craniano X) é um dos principais condutores das informações neurais que regulam o funcionamento visceral dos animais. Ele é composto por dois troncos: tronco dorsal e tronco ventral, que seguem junto ao esôfago até o abdômen e promovem inervação autonômica para o rúmen, retículo, omaso, abomaso, intestinos e até mesmo o fígado (Fubini & Divers, 2008).
- O tronco dorsal do nervo vago inerva o rúmen e as porções mais caudais e mediais do retículo, omaso e abomaso.
- O tronco ventral inerva principalmente a região cranial desses compartimentos, além do fígado e intestinos proximais.
Essas estruturas digestivas dependem fortemente dos estímulos nervosos fornecidos pelo vago para garantir:
- A motilidade do rúmen e dos demais compartimentos;
- A condução do bolo alimentar;
- A ocorrência de eructação;
- A secreção de enzimas digestivas.
Com isso, qualquer alteração na função deste nervo compromete diretamente a digestão, absorção de nutrientes e o bem-estar geral do animal. Como consequência, os animais afetados apresentam perda de apetite, timpanismo, distensão abdominal e acentuada queda na produtividade leiteira (Garry & McConnel, 2015).
O que é a lesão do nervo vago?
A lesão do nervo vago, ou indigestão vagal, consiste em um dano estrutural ou funcional que compromete a capacidade do nervo de conduzir impulsos neurais aos órgãos viscerais que ele inerva. Em bovinos, isso afeta diretamente o funcionamento do rúmen, retículo, omaso, abomaso e intestinos, todos compartimentos vitais para a digestão eficiente.
A disfunção vagal resulta, principalmente, na perda da motilidade ruminal, falhas na eructação, acúmulo de gases, distensão abdominal e refluxos digestivos, criando um cenário que prejudica severamente a alimentação, digestão, conforto e desempenho da vaca leiteira (Hussain et al., 2017).
Além do prejuízo à saúde do animal, a condição traz consequências econômicas relevantes, como:
- Redução drástica na produção de leite;
- Retirada precoce de vacas do rebanho;
- Aumento no uso de medicamentos;
- Custos com diagnóstico e cirurgia;
- Casos de morte em situações graves.
Causas mais comuns da indigestão vagal
As causas que levam à indigestão vagal são multifatoriais e, em muitos casos, estão relacionadas a patologias adjacentes que promovem compressão ou inflamação local. As mais relatadas na literatura científica incluem:
- Reticuloperitonite traumática (RPT): É a principal causa associada à lesão vagal. A ingestão acidental de corpos estranhos metálicos (como arames, pregos, pedaços de cerca) pode perfurar a parede do retículo, provocando inflamação local, formação de aderências e até abscessos que comprometem a função do nervo vago (Fubini & Divers, 2008).
- Abscessos hepáticos e infecções abdominais: Formações purulentas próximas ao trajeto do nervo vago podem causar compressão direta ou desencadear inflamações secundárias, levando à disfunção nervosa.
- Hérnia diafragmática e vólvulo de abomaso: Alterações anatômicas significativas, como a migração de vísceras para o tórax ou torções do abomaso, podem distorcer a posição dos troncos vagais, causando estiramento ou compressão mecânica.
- Neoplasias (tumores): Tumores de crescimento lento localizados no mediastino ou próximos ao esôfago podem exercer pressão sobre o nervo ao longo de seu trajeto, interrompendo os estímulos neurais (Perkins, 2017).
- Útero gravídico em gestação avançada: Apesar de mais raro, o volume do útero em gestação adiantada pode alterar o posicionamento das vísceras abdominais, comprimindo estruturas próximas e dificultando o esvaziamento do conteúdo digestivo, condição que se relaciona com a indigestão vagal tipo IV.
- Cirurgias e traumas locais: Cirurgias mal conduzidas ou traumas na região abdominal ou torácica também podem afetar diretamente o nervo vago, tanto por lesão física quanto por processos inflamatórios posteriores (Walker, 2017).
Principais sinais clínicos da indigestão vagal
A apresentação clínica da indigestão vagal em vacas leiteiras é bastante variável e depende diretamente da localização e da extensão do dano. No entanto, alguns sinais são recorrentes e devem acender um alerta no manejo clínico:
- Inapetência ou perda completa do apetite;
- Emagrecimento progressivo;
- Queda significativa na produção de leite;
- Timpanismo recorrente, geralmente sem resposta duradoura ao manejo tradicional;
- Distensão abdominal assimétrica, com formato típico em “maçã-pera”;
- Perda da estratificação ruminal, percebida na auscultação e percussão.
A distensão em formato maçã-pera é um sinal clássico:
- Lado esquerdo (maçã): distensão gasosa do rúmen;
- Lado direito (pera): acúmulo de conteúdo líquido e pastoso nos compartimentos posteriores.
Além disso, a auscultação pode revelar som de ping metálico na fossa paralombar esquerda, especialmente nos casos com distensão gasosa acentuada, indicativo de timpanismo livre ou com refluxo do abomaso para o rúmen (Garry & McConnel, 2015).
Síndrome de Hoflund: a indigestão vagal em detalhe
A chamada Síndrome de Hoflund, também conhecida como indigestão vagal, é a expressão clínica da lesão do nervo vago. Caracteriza-se pela falha na motilidade normal do trato gastrointestinal devido à disfunção da inervação, podendo ocorrer desde o esôfago até o piloro.
Essa condição foi sistematizada em quatro tipos distintos, com base na localização do comprometimento e nas manifestações clínicas associadas (Hussain et al., 2017).
Tipo I – Falha na eructação (timpanismo gasoso)
- Mecanismo: ocorre obstrução funcional do esôfago, dificultando a eliminação de gases.
- Sinais clínicos: timpanismo agudo e recorrente, apatia, hipomotilidade ruminal ou atonia.
- Diagnóstico prático: alívio imediato após passagem de sonda orogástrica.
- Possível causa: inflamação local, aderências, linfadenopatias mediastinais.
Tipo II – Disfunção do orifício retículo-omasal
- Mecanismo: o retículo falha em empurrar o conteúdo para o omaso, causando retenção alimentar.
- Sinais clínicos: distensão abdominal, diminuição do volume fecal (fezes secas e com partículas grandes), hipermotilidade ruminal, apatia.
- Causas associadas: reticuloperitonite, abscessos adjacentes, úlceras.
Nesse tipo, o animal pode apresentar refluxo de conteúdo durante sondagem, o que reforça o diagnóstico clínico.
Tipo III – Obstrução do piloro
- Mecanismo: o conteúdo do abomaso não passa para o intestino delgado, provocando acúmulo e refluxo ao rúmen.
- Sinais clínicos: distensão abdominal, timpanismo intermitente, cloretos elevados no rúmen, sinais de alcalose metabólica.
- Diagnóstico diferencial: pH ruminal alcalino ajuda a diferenciar do tipo II.
As causas mais comuns incluem úlceras perfuradas do abomaso e sequelas de RPT.
Tipo IV – Compressão por gestação avançada
- Mecanismo: o útero em estágio final de gestação altera a anatomia abdominal, interferindo na motilidade gastrointestinal.
- Sinais clínicos: distensão abdominal progressiva, apatia, ingestão reduzida.
- Desafios: a etiologia não está totalmente esclarecida; não é uma condição inflamatória direta do nervo.
Diagnóstico: do exame clínico à laparotomia
O diagnóstico de indigestão vagal exige avaliação clínica cuidadosa e integração entre sinais clínicos, exames laboratoriais e exames de imagem.
Muitas vezes, o desafio está em diferenciar a indigestão vagal de outras causas de distensão abdominal e timpanismo.
1. Anamnese e histórico clínico
- Queda progressiva na ingestão de alimentos;
- Diminuição da produção de leite;
- Episódios recorrentes de timpanismo;
- Cirurgias anteriores ou gestações recentes;
- Presença de corpo estranho metálico (RPT como hipótese primária).
2. Exame físico completo
- Inspeção visual da distensão abdominal (formato maçã-pera);
- Auscultação e percussão do rúmen;
- Identificação de timpanismo, atonia ou hipermotilidade;
- Observação de refluxo durante sondagem.
3. Sondagem orogástrica
- Permite aliviar timpanismo (tipo I);
- Pode evidenciar refluxo espontâneo de conteúdo (tipo II ou III);
- Avaliação da resposta à passagem da sonda auxilia no diagnóstico diferencial.
4. Ruminocentese e avaliação do conteúdo ruminal
- Medição de pH do rúmen (alcalose em tipo III);
- Dosagem de cloretos: valores elevados indicam refluxo abomasal.
5. Ultrassonografia abdominal
- Auxilia na detecção de aderências, abscessos, útero gestante, líquido livre ou massas;
- Permite descartar causas mecânicas ou avaliar viabilidade cirúrgica.
6. Laparotomia exploratória
- Quando as evidências clínicas não são conclusivas;
- Permite visualização direta do retículo, fígado, úlceras, aderências e tumores;
- Também pode ser utilizada como via de abordagem terapêutica.
7. Necrópsia (em casos fatais)
- Confirmação diagnóstica;
- Avaliação anatômica completa para investigação epidemiológica.
Importante: segundo Perkins (2017), o diagnóstico definitivo só é possível com a associação de exames complementares ao exame clínico minucioso, especialmente na diferenciação entre os tipos de indigestão vagal.
Tratamento: Abordagem conservadora e cirúrgica
O tratamento da lesão do nervo vago e das indigestões vagais associadas depende da identificação do tipo e da causa primária. Sempre que possível, opta-se por medidas conservadoras, mas em muitos casos, a cirurgia é necessária para resolver obstruções ou remover focos inflamatórios.
Tratamentos Conservadores
Tipo I:
- Sondagem orogástrica frequente;
- Colocação de cânula ou fístula ruminal em casos crônicos;
- Terapia de suporte com anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs) e fluidoterapia.
Tipo II e III:
- Correção da causa primária: administração de antibióticos, antiácidos, dieta rica em fibras e de fácil digestão;
- Monitoramento dos níveis de eletrólitos e equilíbrio ácido-base;
- Reposição de fluídos + tratamento da acidose/alcalose metabólica;
- Uso de medicamentos pró-cinéticos em alguns casos.
Tipo IV:
- Terapia de suporte, considerando a limitação de intervenção no final da gestação;
- Acompanhamento próximo da evolução clínica e do parto.
Tratamento Cirúrgico
A cirurgia é indicada quando:
- Há reticuloperitonite com abscesso encapsulado;
- Presença de corpo estranho metálico no retículo;
- Casos graves de aderências ou lesões obstrutivas;
- Refratariedade à terapia clínica.
Procedimentos possíveis:
- Ruminotomia exploratória com remoção de corpos estranhos;
- Drenagem de abscessos intra-abdominais;
- Descompressão abomasal;
- Em alguns casos, pode-se instalar uma fístula permanente no rúmen para manejo crônico.
Segundo Walker (2017), o sucesso cirúrgico depende fortemente do diagnóstico precoce e da condição clínica geral do animal no momento da intervenção.
Prevenção eficaz e sustentável
A prevenção da lesão do nervo vago e da indigestão vagal deve focar principalmente nas causas mais recorrentes, especialmente a reticuloperitonite traumática, que é amplamente documentada como a principal origem desse tipo de lesão (Fubini & Divers, 2008; Hussain et al., 2017).
1. Administração de ímãs ruminais
- Ímãs retais ou orais capturam objetos metálicos ingeridos, como pregos, arames e fragmentos metálicos.
- Prevenção direta da perfuração do retículo por corpos estranhos.
2. Controle rigoroso da dieta e ambiente
- Evitar o fornecimento de alimentos ou feno com resíduos metálicos.
- Boa manutenção de equipamentos, cercas e estruturas da fazenda para evitar desprendimentos e utilização de ímãs no vagão de trato.
3. Monitoramento de vacas gestantes
- Em fases finais de gestação, monitorar sinais clínicos digestivos relacionados à compressão visceral (tipo IV).
- Adotar práticas nutricionais que reduzam distensões excessivas.
4. Detecção precoce de distúrbios digestivos
- Qualquer sinal de inapetência, distensão abdominal ou timpanismo deve ser investigado com atenção.
- Capacitar a equipe para reconhecer os sinais da síndrome de Hoflund.
5. Programa de saúde preventiva
- Checagens periódicas, avaliações clínicas e exames ultrassonográficos estratégicos são ferramentas valiosas.
- Acompanhamento de casos de retocolite ou abomasopexia como fatores de risco futuros.
Conclusão
A lesão do nervo vago em vacas leiteiras é um desafio clínico que exige conhecimento técnico, atenção aos detalhes e ação rápida. Sua manifestação por meio da síndrome de Hoflund, dividida em quatro tipos, permite uma abordagem diagnóstica e terapêutica mais precisa quando bem compreendida.
A chave para minimizar perdas está em três pilares:
- Diagnóstico precoce com base em sinais clínicos sutis, como distensão abdominal e timpanismo.
- Tratamento assertivo, adaptado ao tipo de indigestão vagal e à causa primária.
- Prevenção contínua, com uso de ímãs ruminais, manejo alimentar adequado e vigilância reprodutiva.
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Referências Bibliográficas
- FUBINI, S.; DIVERS, T. J. Diseases Affecting the Vagus Innervation of the Forestomach and Abomasum – Vagus indigestion. In: DIVERS, T. J.; PEEK, S. F. Rebhun’s Diseases of Dairy Cattle. 2ª ed. St. Louis: Elsevier, cap. 5, p. 147-151, 2008.
- GARRY, F.; McCONNEL, C. Indigestion in Ruminants. In: SMITH, B. P. Large Animal Internal Medicine. 5ª ed. St. Louis: Elsevier, cap. 32, p. 777-799, 2015.
- HUSSAIN, S.; UPPAL, S.; HUSSAIN, T.; NABI, S.; BEIGH, S.; ASHRAF, S. Vagus indigestion in bovines: a review in historical perspective. The Pharma Innovation Journal, v. 6, p. 157-163, 2017.
- PERKINS, G. A. Disorders Causing Abdominal Distension in Cattle – Vagus indigestion. In: FUBINI, S. L.; DUCHARME, N. G. Farm Animal Surgery. 2ª ed. St. Louis: Elsevier, cap. 1, p. 3-5, 2017.
- WALKER, W. Surgery of the Ruminant Forestomach Compartments – Vagal indigestion. In: FUBINI, S. L.; DUCHARME, N. G. Farm Animal Surgery. 2ª ed. St. Louis: Elsevier, cap. 14, p. 249-259, 2017.
Parabéns. Que artigo bem redigido. Super explicativo. Estou sempre acompanhando vocês.